quarta-feira, 25 de maio de 2011

O que fica - Cris Guerra



[...]Somos feitos de quem passa por nós. Vamos nos misturando em gostos, aprendizados, histórias. E assim somos um pouco mais o outro, sem deixar de ser cada um de nós.

 E se o tempo é de interatividade sem fronteiras, somos até mesmo quem sequer conhecemos. Somos o que ouvimos, o que lemos, o que vimos. Somos o que nos toca. O que assusta ou preenche. Somos o oposto que choca. Somos o igual que conforta. Sou a peça de teatro a que assisti duas vezes, o filme que me fez chorar, a viagem que não fiz, mas cujas fotos me impressionaram.

 Sou a biografia de alguém que já morreu. Sou o que quero ser. Sou a empregada emburrada que me negava o suco antes do almoço. Sou a lágrima que me corria diante do prato de comida em frente ao suco. Sou o bacalhau disputado. O chefe que bocejava com som de filme de terror. Sou o porteiro que estava sempre de acordo. Sou musical, como o cartão que o amigo do meu avô enviava todo Natal. Sou o show do Prince, a camareira senegalesa do hotelzinho em Paris, o negro curaçaolenho que me indicou o caminho para a ponte. Sou meu professor de redação publicitária e sua risada sarcástica que apavorava os alunos. Sou os olhos brilhando da avó de uma amiga – e sei fazer goiabada da roça. Sou os meninos carentes do Vale do Jequiti- nhonha: seca de abraço. Sou elétrica, mas mora em mim o olhar calmo do professor de ioga.

 E mora a faxineira tristonha, o velho de muletas, o cachorro magro na rua, a perua no alto do carro importado, a fumaça do ônibus, a guerra na favela. Sou o que fica impresso na retina. O que maltrata o coração. O que o bombeia de volta. Sou muitas pessoas e de muitas delas nem sei os nomes. Sou lugares, momentos, cenas, sou o que não aconteceu. Sou frustrações e conquistas.

 Sou a falta de quem deixou de passar por mim. Sou o silêncio do que não li. A ignorância que pergunta. A criança que eu queria ter sido, a velha que quero ser. Cada fato ou alguém que sou me diz um pouco mais de mim. E com tantas novidades sobre mim à minha volta, vivo surpresa. E meus olhos não perdem o viço.
"Há tempo para a calmaria e a serenidade. Mas também há tempo para o turbilhão. Dos escombros se constroem mudanças e começa uma nova obra. Com mais janelas para respirar".

Nenhum comentário:

Postar um comentário