quarta-feira, 27 de abril de 2011

O silêncio

“Vivemos o século do barulho. No tempo em que o tempo passa rápido, a informação é o medo de não se ter nada a dizer. É proibido não ter nada a dizer.”


Um, dois, dez, sessenta segundos. Um minuto parece uma eternidade. O relógio corre e já não sabemos esperar. Queremos a resposta, os pães, a sacola, o passo à frente, a solução, a fofoca, a surpresa, o recibo, o cardápio, a sobremesa, a conta, o troco. Queremos seguir em frente. Não há tempo a perder, o que esperar. Não há por que parar.
Vivemos o século do barulho. No tempo em que o tempo passa rápido, a informação é o medo de não se ter nada a dizer. É proibido não ter nada a dizer.
De todos os cantos e lados, em todos os sentidos e direções, cruzam palavras, ideias, sons, promessas, imagens, ruídos, vozes, de modo que não sobre espaço vazio. Espaços vazios são desprovidos de valor, é o que pensamos. E não sabemos parar de pensar.

Engolimos o café da manhã. Fazemos negócios na hora do almoço. Jantamos em frente à TV. Diante do sinal vermelho, verificamos o e-mail no celular. Com o celular na orelha, vamos ao banco, à banca, pedimos ao menino que lave o carro. Enquanto resolvemos problemas, arranjamos outros.
É preciso preencher o tempo, que é escasso e veloz.

E sabemos sobre tudo, versamos sobre qualquer assunto, lemos e vemos e ouvimos e olhamos em todos os buracos de todas as fechaduras. E temos opiniões sobre cada um e cada fato – até os que não aconteceram. E não paramos de produzir fatos.

Talvez reste o silêncio na hora de dormir. Mas por dentro os problemas gritam agudos e as soluções se desenham escandalosas, atrapalhando o sono como o volume alto da TV.
Até que finalmente adormecemos. Mas sonhamos incessantemente. E nossos sonhos são barulhentos.
Como é barulhento o despertador no dia seguinte: o botão que liga de novo o turbilhão.
Pá! Batemos a mão forte no despertador, em busca do silêncio.

Alguém me ouviu? Si-lên-cio. O que eu quero dizer é um silêncio. Sim, é um silêncio que quero dizer. Mas tenho medo de não ser compreendida. É preciso que o silêncio seja dito e, mais que isso: que seja ouvido.

O silêncio que nos falta é nosso, do outro, do mundo. É preciso dizer água correndo, passarinho cantando, vento ventando. É preciso sussurrar rolha de champanhe, serra de pão, ovo quebrando, água fervendo. É preciso ouvir a respiração do filho dormindo.
É preciso dizer sem significar. Estamos fartos de significados.

Enquanto o tempo passou tagarela, nós nos perdemos do silêncio como se ele não nos fosse o ar. E vivemos na densidade da água, respirando ondas, imagem e movimento, com ajuda das guelras que o tempo nos fez. 

Já não sabemos viver outra vida. O silêncio nos adoece e culpa. Até que venha alguma força para nos fazer parar. Um avião, um susto, a tragédia da chuva, uma dor emudecida no ar. Por um momento pouco, silenciamos. E finalmente ouvimos o que não temos a dizer. Torcendo para que tudo logo recomece.
Temos medo de ensurdecer no silêncio, como se dizer e ouvir fossem o que nos mantém vivos. Temos vergonha de não significar.
O silêncio é constrangimento, é espaço para a dúvida, é escolher o que fazer com o tempo. Silêncio é solidão e medo. É sair do automático, olhar-se no espelho, ouvir suas faltas. O silêncio amedronta e cura.

E no silêncio do meu ventilador ligado, jogo o corpo na cadeira, tentando achar espaço para pensar. Mas o silêncio me engole e eu não quero pensar em nada, dizer nada, nada decidir nem para nada ir.
O relógio silencioso do computador avisa que o prédio vai fechar, pois já é tarde. Tarde demais para calar.
Fecho o computador, a gaveta, a porta – e cada um desses sons me diz alguma coisa. Duas voltas com a tetrachave e o pensamento não cala, com medo do que se pode esquecer. O elevador acende a luz e é como um sino o seu som de chegar. A voz do elevador me diz o andar.
Abre-se a porta, o som da rua vem preencher o meu silêncio angustiante daqueles trinta segundos no elevador. Desarmo o alarme do carro, ligo o som e sigo em frente, na companhia da música, do barulho do motor, das luzes do semáforo e da indecisão na cabeça, sobre o que fazer com o tempo livre que me restou do dia.
Silêncio. Silêncio. Silêncio.
E o som da palavra se desprende de seu sentido, virando um mantra em mim. É o máximo de silêncio que posso alcançar.

Cris Guerra

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